caça com arco e flecha

Da caça ao esporte – a história milenar do arco e flecha

archery history

Da caça ao esporte

Nenhum item esportivo é tão ligado à história da humanidade como o arco. O arco garantiu a sobrevivência de vários de nossos antepassados com um instrumento de caça eficaz quando o homem ainda habitava cavernas; definiu o rumo de batalhas sangrentas na Antiguidade e Idade Média; e esteve presente em uma das primeiras edições dos Jogos Olímpicos modernos, em 1900.

O arco também foi desenvolvido por todas as civilizações antigas, de forma independente uma da outra, o que gerou uma enorme variedade desse item ao redor do mundo, do assimétrico e eficiente arco huno ao compacto e preciso arco indígena brasileiro, chegando aos arcos modernos, utilizados na modalidade esportiva tiro com arco.

A ideia é bastante instintiva: tensionar um arco com uma corda para lançar uma flecha; essa é a essência do conjunto arco e flecha. Milhares de pessoas ao redor do mundo fazem uso desses equipamentos, seja como prática recreativa, esporte ou caça. E isso desde há muito tempo; não se sabe há quantos anos exatamente, mas não são menos que algumas dezenas de milhares de anos.

Linha do tempo do arco e flecha

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O instrumento de caça

A) Simulação da morte de Ötzi, o arqueiro mais antigo de que se tem registro. B) Flechas encontradas na aljava de Ötzi. C) Cadáver real de Ötzi, morto com uma flechada.

A) Simulação da morte de Ötzi, o arqueiro mais antigo de que se tem registro. B) Flechas encontradas na aljava de Ötzi. C) Cadáver real de Ötzi, morto com uma flechada.

Em um ano de inverno rigoroso, Ötzi teve de se afastar demais de sua civilização para voltar para casa com o jantar. Ele portava um arco de teixo inacabado, algumas unidades de flecha, um machado e proteção contra o frio, muito frio. Com o estômago clamando por comida, Ötzi tem dificuldade até para se manter em pé, mas ele renova as forças quando avista a presa: um alce a 90 metros de distância, rondando por trás das árvores. A inanição é tanta que o arqueiro por um momento acredita ser uma ilusão, mas logo ele tem a certeza de que está diante de sua refeição. Ele se aproxima alguns metros lenta e silenciosamente, controlando a respiração; em seguida fica imóvel, sem mais um passo à frente, temendo ser visto pela presa e que esta se afugente.

O arqueiro remove o seu arco a tiraloco. Saca uma flecha. Arma o projétil sem nenhum ruído. Tensiona a corda até onde pode. Calcula a distância do jantar e o percurso da flecha até atingi-lo. O disparo ocorre de forma descontrolada. Ötzi tomba ao chão. O caçador, que havia invadido terras de tribos inimigos em busca de alimentação fora atingido por uma flecha no ombro direito. Antes de cair, ele vê a sua flecha em um rumo incerto, a presa ouve o seu gemido de dor, ela corre. Ötzi imagina a sua família faminta e agoniza.

Ötzi é o mais antigo arqueiro de que se tem registro. O corpo bem conservado é datado de 5.200, foi localizado na região Ötzi – de onde os arqueólogos tiraram o seu nome de batismo -, na fronteira entre a Itália e Áustria. Ele foi descoberto em 1991. O estado bem conservado do corpo e das armas é uma ótima fonte de estudo sobre os arcos primitivos. Sabe-se que os guerreiros do grupo de Ötzi tinham arcos de teixo e flechas com pontas de pedra. O guerreiro deste conto – narrado com base nas evidências científicas – tinha 1,60 metro e um arco de 1,85 metro. Algo próximo das proporções utilizadas até hoje.

O Barranco de la Valltorta, na Espanha, tem pinturas rupestres do arco e flecha

O Barranco de la Valltorta, na Espanha, tem pinturas rupestres do arco e flecha

Antes de Ötzi, no entanto, houve outros arqueiros. E bem mais antigos. A origem do arco e da flecha se perde no tempo, de modo que não se sabe exatamente quando e onde ele foi desenvolvido pela primeira vez. Os arcos de nossos ancestrais, feitos de madeira, se conservam por milênios apenas em condições bastante específicas. Por conta disso, os arcos se deterioraram em sua maior parte ao logo do tempo, tornando mais difícil o seu estudo histórico.

Ainda assim, alguns exemplares sobreviveram; os mais antigos são datados de dezenas de milhares de anos, quase todos do norte da Europa. Já as pontas de flecha são bem mais resistente à passagem dos anos. Mesmo com a coleta dessas relíquias, é difícil tentar precisar a data de nascimento do arco e da flecha, já que nem todas as pontas eram feitas de madeira. A maior parte das pontas encontradas em florestas do Brasil e Papua Nova Guiné é esculpida em madeira por exemplo.

O que se tem certeza é que o arco e flecha foram fundamentais para a sobrevivência do homem em tempos antigos. Era a forma mais eficiente de caçar antílopes, por exemplo, sem ter que se aproximar demais da presa e correr o risco de afugentá-la. O Barranco de la Valltorta, na Espanha, tem um dos registros mais antigos desse tipo de caça. O uso do arco pelos caçadores é evidente na pintura.

Também há indícios de que tribos antigas usavam o arco para batalhas entre homens na região onde hoje é a Europa. Em Talhiem, na Alemanha, 34 esqueletos humanos foram encontrados com ferimentos de flecha em uma vala datada de 7.000 anos atrás.

O arco bem conservado mais antigo já encontrado é datado de 9.200 anos atrás. Trata-se do arco de Homegaard, encontrado na Alemanha. É uma peça bastante sofisticada, com pala achatada – o que lembra os modernos arcos recurvos. Do período Mesolítico – entre a última Era Glacial e o início da agricultura – foram encontrados pelo menos 30 arcos, predominantemente feitos da madeira olmo.

A) Arco de Holmegaard, na Dinamarca, de 9.200 anos, uma dos mais antigos já descobertos. B) Arco recurvo do Lago Ledro, da idade do Bronze

A) Arco de Holmegaard, na Dinamarca, de 9.200 anos, uma dos mais antigos já descobertos. B) Arco recurvo do Lago Ledro, na Itália, da idade do Bronze

Da Idade do Bronze são datados os arcos recurvos mais antigos, como o arco recurvo do Lago Ledro, na Itália, de 57 polegadas. Com o avanço da Idade do Bronze houve uma redução no uso do arco e as relíquias arqueológicas se tornaram mais escassas. Um dos fatores é o avanço da agricultura, o que reduziu a necessidade da caça.

O homem passou a cultivar sua própria comida, seja plantando o fruto ou mantendo o gado no quintal, que lhe se serviria de refeição. O arco, no entanto, foi reinventado, e passou a ter outra finalidade.

A arma de guerra

Batalha de Agincourt, arqueiros franceses e ingleses na linha de frente

Batalha de Agincourt, arqueiros franceses e ingleses na linha de frente

Até a Idade Média, nenhuma arma tinha um alcance tão longo e preciso quanto o arco e flecha. Isso deu a vantagem de guerreiros começassem a devastar a linha de frente inimiga a algumas centenas de metros de distância. Foi graças a guerreiros exímios no arco que 15 mil ingleses e galeses aos farrapos e com disenteria venceram cerca de 50 mil franceses na Batalha de Agincourt, durante a Guerra dos 100 anos, em 1415.

Em um campo de batalha lamacento, os ingleses conseguiram exterminar as montarias inimigas – as flechas não tiveram a mesma eficiência contra as armaduras dos soldados franceses. Sem os cavalos, os franceses lutaram em desvantagem em meio ao atoleiro e lavaram a pior. Os números não são precisos, mas estima-se a morte de 1.600 ingleses e 10.000 franceses.

Os ingleses, no entanto, não foram os primeiros a perceber o potencial do arco como uma arca de guerra. Em 3.500 antes da Era Comum (AEC), os egípcios criaram um arco de guerra letal e técnicas de batalhas assustadoras. Na tumba de Tutancâmon, descoberta em 1922, havia vários arcos. Historiadores modernos afirmam que o rei menino era um entusiasta do arco e flecha.

A tumba do faraó Tutancâmon, descoberta em 1992, e os arcos lá encontrados

A tumba do faraó Tutancâmon, descoberta em 1992, e os arcos lá encontrados

O rei Tutancâmon e Ankhesenamon, sua meia-irmã e mulher, iam com frequência ao delta do Rio Nilo – “uma região coberta por uma densa vegetação pantanosa e lar de grande quantidade de aves aquáticas”, como descreve o Guia do Estudante, editora Abril. Ele costumava caçar avestruzes a gazelas montado em bigas guiadas por vassalos, enquanto a rainha lhe preparava a próxima flecha. Mesmo quando praticava o tiro com arco como hobby, Tutancâmon usava arcos de guerra, maiores que ele próprio e cujas flechas atingiam distâncias de até 200 metros. Nas batalhas, os egípcios usavam suas bigas aceleradas enquanto arqueiros precisos eliminavam os inimigos.

Por volta de 1.800 a.E.C, os assírios revolucionaram os arcos, tornando-os mais compactos e leves, perfeito para uso montado a cavalo. Os romanos, tão conhecidos pela devoção à guerra, só dominariam o arco por volta de 100 E.C. Os seus inimigos bárbaros, especialmente os hunos, também eram especialistas na arqueria montada. Também foram exímios no uso do arco os hititas, citas, tártaros da Crimeia e mongóis. (Veja na figura abaixo o modelo de arco de cada povo.)

Povos que desenvolveram grandes perícias com o arco: A) Arco longo medieval de teixo; B) arco de nativos da América curvado; C) arco angulado do Oeste da Ásia; D) arco do povo cita; E) arco turco do século XVII; F) arco dos tártaros da Crimeia

Povos que desenvolveram grandes perícias com o arco: A) Arco longo medieval de teixo; B) arco de nativos da América curvado; C) arco angulado do Oeste da Ásia; D) arco do povo cita; E) arco turco do século XVII; F) arco dos tártaros da Crimeia

A Batalha de  Hastings, entre normandos e saxões em 1066, foi uma das grandes batalhas em que o arco foi decisivo a favor da tropa vencedora. Após uma saraivada sem eficiência, Guilherme II, duque da Normandia, ordena uma nova chuva de flechas, com os arqueiros dispostos mais próximos das frentes inimigas. O resultado, bem mais eficiente que a primeira saraivada, enfraquece a tropa inglesa. O rei inglês Haroldo II foi morto com uma flechada no olho esquerda. Sem o seu estrategista, o exército inglês lutou de forma desordenada, e sua barreira de escudos fracassou. A batalha marcou a conquista normanda e o fim da dinastia de reis anglo-saxões na Inglaterra.

No século XII a pólvora foi inventada pelos chineses, o que deu origem às armas de fogo. Com um poder de destruição bem maior, a pólvora substituiu gradativamente o arco como arma de guerra, este porém jamais se tornaria obsoleto.  O último registro do uso de arcos em batalha na Grã-Bretanha parece ter sido em outubro de 1642; durante a Guerra Civil Inglesa , uma milícia improvisada de arqueiros foi eficaz contra mosqueteiros sem armaduras.

O arco mostrou mais uma vez versatilidade e capacidade de se reinventar, tornando-se o artigo que utilizamos atualmente.

O esporte

(Vídeo de divulgação do tiro com arco da World Archery, em inglês; se preciso, ative a legenda do YouTube e escolha a opção de tradução para o português.)

O tiro com arco é um desafio. Requer estabilidade, concentração, precisão, foco e perseverança. Nada mais natural que se torna-se um esporte, atualmente praticado em quase todos os países do globo. O tiro com arco nasceu como esporte entre a aristocracia do Reino Unido do século XVII. Em 1688 foram criados os clubes de tiro “Finsbury Archers” e o “Kilwinning Paping”. Nas competições, os arqueiros tinham que acertar um papagaio de madeira.

1908: competição feminina de tiro com arco nas Olimpíadas

1908: competição feminina de tiro com arco nas Olimpíadas

No final do século XVIII, o arco e flecha chegaram à nobreza inglesa com a fundação da  Toxophilite Society, em Londres, que contava com o patrocínio do príncipe de Gales, George. Nessa época, o tiro com arco era usado também como exibição de status e paqueras, já que o esporte aceitava, desde o princípio, a participação de mulheres, mesmo num período em que elas eram vetadas da maioria dos esportes. “As mulheres jovens não só podiam competir nos concursos, mas manter e mostrar a sua sexualidade ao fazê-lo”, diz o artigo “History of Archery”, da Wikipédia, em inglês.

A partir de 1840, a arqueria começava a se tornar um esporte moderno, com a fundação da Grand National Society Archery, na cidade de Iorque, no Reino Unido. A sociedade padronizou a quantidade de tiro e distâncias no chamado Round Iorque – um antecessor do Round Fita – com distâncias de 60, 80 e 100 metros.

Coreanos são atualmente os maiores medalhistas olímpicos

Nos Estados Unidos, o tiro com arco nasceu como esporte em 1911, inicialmente com técnicas aprendidas a partir dos índios da tribo Ishi. Na Coreia, o país onde o tiro com arco é o esporte mais popular, a disseminação do esporte foi motivada pelo imperador Gonjog. E na China, houve um crescimento pelo interesse em arcos tradicionais nos anos 1900.

O esporte chegou ao Brasil por meio do  comissário de voo Adolpho Porta, na década de 1950. Adolpho conheceu o arco e flecha em Portugal, onde morou. “Na Feira Popular, evento anual em Lisboa, o Sr. Adolpho conheceu um hábil marceneiro chamado Arlindo, que tinha um estande de tiro com arco. Notando o interesse do Sr. Adolpho pelo esporte, convidou-o para ser sócio do Glória Atlético Clube, onde praticava. Em 1955, quando seu baseamento terminou, Rodolpho Porta regressou ao Rio de Janeiro trazendo alvos, arcos e flechas fabricados por Arlindo”, registra a CBTARCO.

A primeira prova no Brasil ocorreu em 5 de novembro de 1955, no Estande de Tiro General Dutra, na Quinta da Boa Vista. A Federação Mineira de Arco e Flecha (FMAF) é um dos mais antigos grupos organizados de prática do esporte, fundado em 1973. A FMAF, “desde 1997 consegue, ininterruptamente, manter pelo menos um atleta na seleção Brasileira de Tiro com Arco, afirmando assim a sua importância no cenário olímpico brasileiro”.

Em 1900 o tiro com arco teve sua primeira participação nas Olimpíadas, em Paris na França. Ele permaneceu nos Jogos Olímpicos até 1920 (exceto em 1912). Depois de um hiato por falta de padronização de competição nos países, o arco e flecha voltaram às competições olímpicas em 1972 e permanecem até hoje. Até 1984, havia apenas a competição individual; a partir de 1988 foi acrescentada a disputa por equipes.

Desde 1980 o Brasil tem representantes nas Olimpíadas, com os seguintes atletas: 1980 Moscou (Renato Emilio e Arcy Kemner); 1984 Los Angeles ( Renato Emilio e Arcy Kempner); 1988 Seoul ( Renato Emilio e Jorge Azevedo); 1992 Barcelona ( Renato Emilio e Victor Krieger); 2008 Pequim ( Gustavo Tranini); 2014 Londres (Daniel Xavier).

Oh Jin Hyek, medalha de ouro nas Olimpíadas de Londres, em 2012

Oh Jin Hyek, medalha de ouro nas Olimpíadas de Londres, em 2012

Atualmente há quatro possibilidades de medalhas de ouro nas Olimpíadas: individual masculino e feminino, e competição por equipe masculina e feminina. Os coreanos são os tradicionais “número um” desde o retorno do tiro com arco aos jogos Olímpicos. A equipe feminina coreana mantém a incrível façanha de nunca ter perdido uma medalha de ouro.

A partir dos anos 1920, os engenheiros profissionais se interessaram pelo tiro com arco, até então campo exclusivo dos especialistas artesanais tradicionais. Eles lideraram o desenvolvimento comercial de novas formas de arco, incluindo o recurvo e arco composto modernos.

No Ceará, a competição esportiva do tiro com arco é bastante nova. Em 2013 foi fundada a Federação Cearense de Tiro com Arco (FCETARCO), o que deu condição do estado ser representado pela primeira vez em uma competição oficial. No mesmo ano da fundação, o atleta Eugênio Franco participou do Campeonato Brasileiro Paralímpico, terminando na honrosa quarta colocação; os atletas André Teixeira e Paulo Henrique, também em 2013, participaram do 39º Campeonato Brasileiro de Tiro com Arco, em Belo Horizonte-MG, respectivamente com o arco composto e recurvo.

Antes da fundação da FCETARCO, havia treinos recreativos mantidos por pequenos grupos em Fortaleza. A Associação Cearense de Tiro com Arco (Aceta), tem atividades desde 2004, sendo a base para a fundação da federação estadual.

FCETARCO, fundada em 2013, permitiu que os primeiros atletas representassem o Ceará em competições oficiais

FCETARCO, fundada em 2013, permitiu que os primeiros atletas representassem o Ceará em competições oficiais

Fontes: Federação Mineira de Arco e Flecha, Associação Cearense de Tiro com Arco, Guia Do Estudante, ThePaas.org, Wikipédia, EsportesMais.webnode.com.br.